Matança programada
As 500 mil mortes pela Covid-19 no Brasil são resultado de um trabalho de destruição programada executado pelo governo federal, que desestimulou medidas de distanciamento e abandonou qualquer papel de coordenação desde o início da pandemia, além de atrasar deliberadamente a compra de vacinas e a imunização da população. Tudo foi feito de propósito e sem piedade, sabendo dos terríveis efeitos que poderiam ser alcançados. Combinou-se, na maquiavélica experiência sanitária brasileira, uma total falta de empatia com um desleixo criminoso contra as orientações científicas, sintetizado na atitude do presidente Jair Bolsonaro de ridicularizar e desaconselhar o uso de máscaras e promover aglomerações todos os fins de semana. O que está sendo feito é um esforço sistemático para acelerar a imunidade coletiva e deixar a pandemia progredir ao deus-dará. O despropositado e crescente número de óbitos, superior a qualquer expectativa, só comprova isso. Trata-se de uma estratégia de ação que demonstra dolo e inconsequência e é acusada de erro criminoso por especialistas em saúde ouvidos pela ISTOÉ.
Para o médico sanitarista da USP Gonzalo Vecina Neto, ex-diretor geral da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pelo menos 30% dos óbitos podem ser atribuídos diretamente ao governo Bolsonaro, por sua inoperância e pela insistência em caminhos cientificamente equivocados. Atraso na compra de vacinas, recusa em fechar acordos com laboratórios internacionais para fornecimento do produto, boicote explícito e debochado à Coronavac, trazida ao Brasil pelo governador de São Paulo, João Doria, adversário do presidente, e politização permanente da doença fizeram parte dessa fórmula de destruição que está sendo esmiuçada na CPI da Covid. Segundo Vecina, se houvesse um Ministério da Saúde funcional e alinhado com as melhores práticas globais de combate ao coronavírus cerca de 170 mil vidas teriam sido salvas. “É difícil imaginar um outro lugar que esteja vivendo a mesma desgraça que o Brasil”, afirma o médico.“A falta de vacinas continua matando gente e esse é nosso principal problema nesse momento”.
O atraso na compra de imunizantes é reflexo de uma vontade clara de favorecer a morte dos indivíduos mais suscetíveis com a chamada imunidade coletiva ou de rebanho e impor uma solução negacionista para o problema, representada pela mentira da “gripezinha”, pela cloroquina e pelos medicamentos do Kit Covid, outra excrescência bolsonarista. A imunidade coletiva acontece quando se atinge um nível de contaminação em que há uma quantidade suficiente de pessoas imunes ao vírus e se interrompe a transmissão comunitária. Ela é alcançada naturalmente e, no caso da Covid-19, doença altamente contagiosa e letal, pode ser inibida ou desacelerada com medidas de controle preconizadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS). No Brasil, esses recursos foram abandonados por ordem e pelo exemplo do presidente no período em que o general Eduardo Pazuello esteve à frente do Ministério, a partir de maio de 2020. Desde então, o governo tem trabalhado para deixar o vírus correr livre e solto, estimulado pelas aglomerações e sem ser obstruído pelas máscaras, para contaminar e matar o maior número de pessoas no menor tempo possível. Deixar morrer foi, inclusive, uma orientação do chamado “gabinete paralelo”, composto por leigos em medicina, e determinante para a criação do caos sanitário. A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber afirmou que a eventual existência desse gabinete “constitui fato gravíssimo” que pode “ter impactado diretamente no modo de enfrentamento da pandemia”.
A palavra que melhor define o combate à Covid-19 no País é descontrole. O Brasil virou um laboratório de cientista louco e os primeiros passos nessa direção foram dados em abril, quando se arquitetava a saída de Luiz Henrique Mandetta do comando do Ministério da Saúde. Segundo o médico João Gabbardo, coordenador executivo do Centro de Contingência da Covid-19 no estado de São Paulo e secretário-executivo do Ministério nos tempos de Mandetta, os projetos de favorecer a imunidade de rebanho e do uso da cloroquina começaram a circular na época entre assessores de Bolsonaro. Gabbardo diz que infelizmente o governo federal não assumiu o papel de coordenação nacional e optou, desde então, por outro caminho, mais curto que o da lógica. “Foi a decisão de seguir por esse caminho alternativo que gerou esse conflito, essa guerra de versões no Brasil”, lembra. “O caminho do governo foi esperar que houvesse algum medicamento mágico e, desde então, começaram a pressionar o presidente com a ideia da imunidade de rebanho.” Segundo ele, analistas amadores do governo olhavam os gráficos do que tinha acontecido na primeira onda na Itália ou na Espanha no primeiro semestre de 2020 e viam que o gráfico subia rápido e depois caia, para alcançar a imunidade de rebanho. Assim, a vida voltaria ao normal no mês seguinte, um erro fatal. “Não consigo imaginar quantos óbitos poderíamos ter evitado, mas não tenho dúvida de que essa política contribuiu para nesse número tão negativo”, afirma.
A escalada de óbitos se intensificou muito a partir de janeiro deste ano, com a chegada da segunda onda e da variante amazônica do coronavírus, a gama. A marca de 100 mil mortes foi atingida no dia 8 de agosto do ano passado, quando o governo dava sinais de que pouco faria para impedir o avanço da doença e Bolsonaro alardeava que era esportista e não corria risco de morte. Naquela altura, a cloroquina era a droga escolhida pelo Ministério da Saúde no seu projeto protelatório, de empurrar a Covid-19 com a barriga. Só oito meses depois, no dia 7 de janeiro de 2021, o País alcançou as 200 mil mortes. Já dava para imaginar que o pior só estava começando, mas mesmo assim, Bolsonaro continuou a boicotar medidas restritivas e a acusar estados e municípios de tirarem a liberdade de movimento das pessoas. Além disso, a campanha de vacinação, que poderia ter sido disparada um mês antes, ainda não tinha se iniciado porque Bolsonaro tentava e continua tentando desacreditar a Coronavac para não favorecer o inimigo João Doria. O contágio e os óbitos passaram a crescer de forma avassaladora e demorou dois meses e meio para alcançar, em 24 de março, as 300 mil mortes. Desde então o coronavírus não dá trégua. Em 29 de abril chegou-se a 400 mil mortes e agora está sendo superado o número de 500 mil.
ATRASO Carga de vacinas chega em Manaus: sabotagem na compra de imunizantes (Crédito:Pedro Ladeira)
A médica pneumologista Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, prefere não dizer que tudo é intencional, mas chama a atenção para a sucessão de erros que levou a uma mortalidade sem precedentes em qualquer crise sanitária ou militar na história brasileira. “Vivemos um excesso de luto e muitas mortes poderiam ter sido evitadas”, diz. “Se houve alguma deliberação do governo no sentido de favorecer a imunidade coletiva, ela foi totalmente equivocada do ponto de vista epidemiológico, médico e estratégico.” Segundo ela, a prova de que a busca desse contágio acelerado é uma tolice foi dada, justamente, em Manaus, que teve a primeira onda da doença entre março e abril de 2020 e em agosto, quando o número de casos caia pelo terceiro mês consecutivo, passou a reabrir as escolas e o comércio. A crença geral naquele momento era que o Amazonas tinha atingido a imunidade coletiva e não sofreria novamente. Mas em janeiro deste ano começou uma segunda onda ainda mais letal, impulsionada pela cepa gama do coronavírus, altamente transmissível. A população estava imunizada para primeira variante, mas não para novas mutações. A variante gama agora está espalhada por todo Brasil e é responsável, por exemplo, por 70% das infecções no estado de São Paulo em maio. Em janeiro, eram 20%.
Para o professor titular de medicina preventiva na USP e coordenador do centro de contingência paulista, Paulo Menezes, a situação atual se deve a uma conjunção de fatores, mas principalmente ao surgimento dessa nova variante. “Aqui no Brasil houve uma absoluta falta de coordenação e uma promoção de atitudes anticientíficas e negacionistas”, diz. “E vejo indícios evidentes de que a falta de coordenação levou à ausência de movimentos de controle importantes, como as medidas de distanciamento social”. Segundo Menezes, a letalidade da doença em São Paulo e no Brasil tem sido maior do que em outras grandes cidades do mundo, onde a vacinação está mais adiantada. No estado, 3,4% dos pacientes que são internados morrem. Na média móvel diária, vão a óbito no Brasil 0,93 pessoa para cada 100 mil habitantes. Na Alemanha, esse índice é de 0,1, no Chile, 0,52 e na Argentina, 1,28. A queda nesse número, como acontece no Chile, que serve de modelo para o que deve acontecer nos próximos meses no Brasil com a vacinação em massa, indica que, apesar de uma alta transmissibilidade, a letalidade da doença é reduzida pela imunização. No Brasil, há uma queda acentuada de internações de idosos com mais de 60 anos que receberam a vacina. Para os maiores de 70 anos, o percentual de internações caiu de 20% para 7,2%.
Na comparação internacional, em números absolutos, o Brasil é o segundo país onde mais morre gente pela Covid-19, só superado pelos Estados Unidos, que tem cem milhões de habitantes a mais, onde morreram 600 mil pessoas. A Índia, que também produziu uma nova variante do coronavírus altamente transmissível, a delta, combustível para uma temível terceira onda, aparece em seguida com 382 mil mortes e, em quarto lugar, vem o México, com 231 mil. Em nenhum outro lugar, porém, se vê um governo atuando francamente a favor do vírus como no Brasil. Todas as “soluções” que se adotam por aqui são desacreditadas internacionalmente. A cloroquina é considerada uma fraude em países do Primeiro Mundo, como Estados Unidos e Reino Unido, que, mesmo vendo suas economias quebrando, o colapso dos hospitais e as pessoas morrendo sem atendimento, não adotaram o medicamento.
Por obra do governo, a vacinação está atrasada em todo o País e ainda não atinge os efeitos desejados de imunização da população (Crédito:Filipe Bispo)
Neste momento, quando tudo parece perdido e as mortes se acumulam, o governo, no seu esforço perverso, ainda encontra forças para promover discursos antivacina e desobrigar o uso de máscaras. Nas últimas semanas, Bolsonaro tem se dedicado a propor medidas de flexibilização do isolamento, a criticar a Coronavac e a falsear o número de mortes pela doença. Citando um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), o presidente disse que o número de óbitos pela Covid-19 em 2020 está superestimado, foi menor do que em 2019 e muitas pessoas teriam sucumbido a outras doenças notificadas erroneamente. “O relatório final não é conclusivo, mas em torno de 50% dos óbitos por Covid no ano passado não foram por Covid, segundo o TCU”, afirmou Bolsonaro. O problema é que o relatório não existe e a realidade aponta para justamente o contrário do que Bolsonaro diz. Os números do próprio governo, obtidos no Portal da Transparência, mostram que em 2019 aconteceram 1,27 milhão de óbitos e, em 2020, 1,46 milhão, um crescimento de 190 mil nos óbitos nos últimos dois anos. A situação é terrível e navegamos cegamente em direção ao precipício da Terra plana. Definitivamente, nunca foi tão fácil morrer no Brasil.
“Um governo a favor do vírus”
Entrevista com João Gabbardo, coordenador-executivo do Centro de Contingência da Covid-19 no estado de São Paulo
Bolsonaro quer desobrigar o uso de máscara. Isso faz sentido?
As evidências de hoje indicam que isso é absolutamente impensável, é mais um boicote às medidas não farmacológicas. No caso das pessoas que já tiveram a doença, a gente corre o risco de ter uma nova infecção por uma variante. Depois, não sabemos ainda por quanto tempo a imunidade vai estar presente, se quem foi vacinado agora vai estar imunizado em maio de 2022.
SERGIO LIMA
O SUS tem sido muito exposto e testado. Ele está funcionando a contento?
O SUS foi fundamental para o enfrentamento da pandemia e está sendo capaz de atender a população. Diferentemente de países do Primeiro Mundo, não tivemos um colapso na assistência. Isso porque o SUS garantiu uma organização prévia e foi possível preparar o atendimento com a ampliação do número de leitos, compra de equipamentos e tudo mais. O problema que vejo no SUS é o futuro. Temos 14, 15 milhões de pessoas que tiveram a doença e se recuperaram, mas boa parte delas ficou com sequelas. Essas pessoas vão continuar precisando de atendimento. Além disso, cirurgias eletivas foram canceladas e diagnósticos e tratamentos, adiados. Tudo isso vai gerar grande demanda para o SUS nos próximos anos.
O problema no Brasil é a politização da doença?
Aqui, além de combater o vírus, a gente tem que combater a ignorância e a desinformação. Isso atrapalhou muito as ações dos governos estaduais e municipais. Não conheço outro país que tenha enfrentado essa realidade, de ter o governo a favor do vírus e contra seu combate. Alguns países tiveram grupos de pessoas que se opunham ao uso de máscaras, mas uma coisa é ter um pequeno grupo social fazendo oposição e outra é ter o presidente, a direção nacional, a autoridade máxima do País sabotando as medidas que a ciência preconiza.