CPI ignora possível conflito de interesses entre relator Renan e empresa investigada
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) — A CPI da Covid entra em sua reta final evitando discussões sobre o fato de seu relator, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), investigar um empresário que é suspeito de ter feito repasses ilegais em favor do próprio congressista, além de outros caciques do MDB.
Esse possível conflito de interesses envolve Francisco Maximiano e sua empresa Global, que tiveram sigilos quebrados na CPI, e transferências de R$ 9 milhões desta firma a Milton Lyra, suspeito de ser operador financeiro de Renan, segundo apurações em inquérito em curso no STF (Supremo Tribunal Federal).
Maximiano está no centro das apurações da CPI do Senado sobre a intermediação de outra empresa dele, a Precisa Medicamentos, para a compra da vacina indiana Covaxin pelo governo Jair Bolsonaro. Ele tem sido cobrado pela CPI por suas ligações com o deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara.
Renan teve acesso a um acervo de documentos obtidos em uma devassa nos dados de Maximiano e suas empresas. Na CPI da Covid, foram quebrados sigilos relativos à Global a partir de 2018.
A partir de solicitações feitas por Renan, foram obtidas informações relativas aos dados fiscais, bancários, telefônicos e telemáticos (como contatos, emails e mensagens enviadas) da empresa, sob a justificativa de identificar as supostas irregularidades relacionadas à pandemia.
Ainda é solicitada a comparação de movimentação financeira em relação aos três anos anteriores ao período em questão –ou seja, a partir de 2015. Não houve questionamentos a respeito da isenção de Renan para analisá-los.
Em tese, Renan terá à sua disposição dados e documentos que já foram ou podem ser recolhidos em medidas de busca e apreensão pela Polícia Federal, e assim ter conhecimento antecipado sobre elementos que eventualmente podem ser usados na investigação do STF.
A pedido da CPI, já houve busca e apreensão da Polícia Federal no último dia 17 em endereços da Precisa, nas cidades de Itapevi e Barueri (ambas na Grande SP). A ação policial foi realizada sob a justificativa de que era necessário obter documentos principalmente relativos à negociação da Covaxin, que supostamente a empresa ocultava.
Procurado pela reportagem, Renan afirmou por meio de sua assessoria que “a ilação feita na matéria é uma das coisas mais absurdas de que se tem notícia”.
“O senador sequer conhecia Maximiano antes da CPI e jamais teve operador”, disse, em nota. “Não por acaso, falsas imputações e ilações irresponsáveis já levaram ao arquivamento de mais de 2/3 das acusações feitas contra ele nos últimos anos. Esse inquérito por certo terá o mesmo destino.”
Apesar de a quebra de sigilo da Global se iniciar em 2018, essa data não é padrão da CPI. No caso de Ricardo Barros, há quebras que se iniciam no ano de 2016, assim como no caso de informações fiscais da Precisa Medicamentos.
Nos últimos dez anos, Maximiano não se envolveu apenas no escândalo das vacinas. O empresário também é suspeito de repasses que são investigados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal. Um desses inquéritos, que tramita no Supremo desde agosto de 2017, aponta suspeitas de que transferências da Global tinham como destinatário final o senador Renan Calheiros. Não tem havido na CPI questionamentos sobre a possibilidade de conflito de interesses nessas apurações conduzidas pelo senador a respeito de empresas que fazem parte de apurações que o envolvem.
A questão foi mencionada na CPI quando o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, provocou Renan ao citar Milton Lyra e o inquérito, em julho. Renan disse que era “uma questão absolutamente inverdadeira”.
“Eu nunca tive operador na minha vida. Minha vida sempre foi transparente, absolutamente transparente. Nunca me acusaram de ter operador. Quem é acusado de ter operador é o senador Flávio Bolsonaro”, respondeu. Após a troca de acusações, a sessão prosseguiu.
O inquérito no STF é relatado pelo ministro Luís Roberto Barroso e investiga suposto pagamento de benefícios a Renan por empresários que fizeram negócios relacionados ao fundo de pensão de funcionários dos Correios, o Postalis.
Parte das negociações que teriam beneficiado Lyra envolvia a aquisição de debêntures (títulos de dívida emitidos por empresas para captar recursos no mercado privado e com isso bancar suas atividades) de empresas pelo Postalis.
No caso da Global, a Polícia Federal apura transferências de R$ 9 milhões ocorridas entre 2011 e 2015 a empresas ligadas a Milton Lyra. Só em fevereiro de 2013, a Global repassou R$ 7,5 milhões a uma firma do operador.
A PF levanta a hipótese de que os pagamentos foram feitos para garantir apoio político de Renan à nomeação e manutenção no cargo de funcionários de alto escalão dos Correios e Postalis, que teriam recomendado, aprovado e viabilizado a transferência de valores para as empresas.
A conclusão do inquérito, aberto em 2017, tem sido adiada de forma sucessiva para mais apurações. Seu conteúdo mais recente foi posto sob sigilo.
A Global foi citada em delação premiada firmada por Alexandre Romano, advogado e ex-vereador de Americana (SP) pelo PT. Ele disse em depoimentos ao Ministério Público Federal em 2015 e 2016 que firmou contratos simulados com a Global, e que parte desses valores eram repassados como propina a um dirigente dos Correios.
Entre o fim de 2011 e o início de 2012, segundo o relato, a Global fechou negócio para fornecer medicamentos com desconto aos funcionários dos Correios, em contratos firmados inicialmente por meio de uma conveniada à estatal e depois pela Postal Saúde (caixa de assistência de saúde dos funcionários dos Correios).
A relação de Maximiano com Alexandre Romano tem sido investigada no âmbito da Justiça Federal de São Paulo, responsável pela Operação Custo Brasil, que envolveu dirigentes petistas.
Em sua delação, Romano diz que Maximiano deu a entender que parte dos valores do esquema criminoso ligado aos Correios também teria como destino o PT, operação que teria contado com a participação do ex-tesoureiro do partido, João Vaccari Neto.
Em nota, os advogados de Maximiano, Ticiano Figueiredo e Pedro Ivo Velloso, afirmam que “este inquérito é baseado na delação mentirosa de Alexandre Romano, que se arrasta há mais de seis anos, sem quaisquer indícios de irregularidades. Francisco Maximiano não foi indiciado muito menos denunciado pelas autoridades em razão das acusações infundadas”.
“Todas as operações financeiras realizadas pelo grupo foram legais e seguiram todos os critérios de integridade e compliance, com serviços prestados e comprovados”, completam.
Já o PT diz em nota que não é parte do procedimento penal, mas “não surpreende que delações sem provas sejam requentadas por setores que não se resignam” com situações como o arquivamento à ação penal do ‘quadrilhão’ e as absolvições de acusados “por entender que a denúncia não tinha justa causa e tratava-se, segundo o juiz, de ‘tentativa de criminalizar a atividade política'”.
Afirma ainda que “Lula resgatou a condição de cidadão inocente e de plenos direitos em 19 ações e inquéritos judiciais e lidera todas as pesquisas presidenciais”.
O advogado Luiz Flávio Borges D’Urso, que representa João Vaccari Neto, diz que seu cliente se defende em relação à acusação sobre um suposto esquema nos Correios em outro processo que tramita na Justiça Federal do Distrito Federal.
Segundo ele, neste processo a acusação sustenta que o delator, um dos denunciados, teria ouvido que outra pessoa deu R$ 1 milhão para uma funcionária do PT e que esse dinheiro deveria ser entregue a Vaccari.
“Essa afirmação, de ouvir dizer, além de ser palavra isolada de delator, sem nenhuma prova a corroborá-la, é totalmente mentirosa”, afirma, acrescentando que o seu cliente jamais recebeu qualquer quantia dessas pessoas e que o próprio delator adverte que nunca tratou desses assuntos com o ex-tesoureiro do PT.
“O processo neste momento está aguardando o início da instrução”, diz D’Urso.
Procurada pela reportagem, a defesa de Milton Lyra não se manifestou.